'Invisíveis na Sapucaí': especialistas analisam precariedade de trabalhadores do Carnaval

Incêndio atingiu uma fábrica que produzia fantasias para o 'maior espetáculo da Terra' e deixou 21 feridos







Por: O Dia

Publicado em: 14/02/2025

Polícia Civil realiza perícia em fábrica da Maximus Confecções após incêndio que deixou 21 vítimas

Reginaldo Pimenta / Agência O Dia





 Rio - O incêndio na fábrica de tecidos em Ramos, na Zona Norte, aflorou o debate sobre as precárias condições de trabalho das pessoas que atuam na preparação do Carnaval. Especialistas ouvidos pelo DIA discorreram sobre os problemas estruturais que levaram a mais um episódio trágico relacionado à produção da festa tida como o 'maior espetáculo da Terra'.


Mauro Cordeiro é líder do Laboratório de Pesquisa Pensamento Social do Samba, professor de Sociologia do Colégio Pedro II, doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do grupo CORRE, da Universidade Federal Rural do Rio (UFRRJ).


Durante a entrevista, o pesquisador destacou a discrepância entre as verbas utilizadas para a produção do desfiles de samba em contraste com a vida e o trabalho dos funcionários inseridos nesse meio. Além disso, pontuou que a precariedade vai além das estruturas físicas, mas também está nas relações trabalhista envolvendo aqueles que são "invisíveis quando as luzes da Sapucaí acendem".


"É uma festa que movimenta muito dinheiro, tem um impacto econômico importante para a cidade, mas precisamos entender para onde está indo esse dinheiro. Parte da beleza e da espetacularidade é financiada pelas custas da superexploração do trabalho. É uma baixíssima formalização do trabalho e do emprego nessa cadeia produtiva, essa lógica das jornadas por empreitadas que funciona como uma espécie de terceirização", ressaltou.


"Se gente pensar na tragédia de ontem, dos grupos de acesso que tem barracões mais precários, é a terceirização da própria produção das fantasias. Hoje, durante uma entrevista, um dos profissionais resgatados estava explicando que ele não é funcionário da fábrica. Na realidade, ele estava lá produzindo as fantasias para as agremiações e a fábrica era um local adequado, entre muitas aspas, pela sua estrutura física para essa produção", explicou.


Mauro afirmou que, ao falar da precariedade das condições de trabalho, é fundamental relacionar à fragilidade do vínculo empregatício entre funcionários e patrões dentro da cadeia produtiva do Carnaval.


"Uma relação de trabalho frágil, com baixa remuneração, baixa formalização do trabalho, vai fazer com que esses trabalhadores, frequentemente, para entregarem um produto, durmam nos barracões que não foram feitos para isso, para economizar o dinheiro da passagem. Estamos falando da condição precária desses trabalhadores que são invisíveis quando as luzes da Sapucaí se acendem. Quando a gente fala da precariedade, é a maneira pela qual esses trabalhadores, sobretudo homens e mulheres negras, produzem essa festa, as alegorias, as fantasias em relações de trabalho absolutamente vulneráveis", pontuou.


O pesquisador relembrou a pandemia de covid-19 ao citar os impactos causados pela fragilidade do vínculo empregatício. Durante esse período, muitos trabalhadores precisaram de caridade ou campanhas solidárias para se manterem. Essas foram organizadas por personagens do universo do Carnaval carioca, mas não por entidades relacionadas à festa.


Artur Paschoa é carnavalesco da Mocidade Unida do Santa Marta, escola que está em busca por uma vaga na Série Ouro em 2026. Ao DIA, ele discorreu sobre a complexidade de entender os fatores que culminam em episódios como desta quarta-feira (12), quando um incêndio atingiu uma fábrica em Ramos, na Zona Norte, que produzia fantasias para o desfile das escolas de samba. Os bombeiros resgataram 21 vítimas, sendo que nove continuam internadas em estado grave.


"Nesses momentos pós-tragédia, a gente sempre tende a buscar culpados. Eu acho que, no caso das condições de trabalho do Carnaval, essa culpa é uma coisa extremamente complexa, porque são muitos os fatores envolvidos. Tem desde a responsabilidade das próprias diretorias das escolas, passando por responsabilidade de Ministério Público do Trabalho, que não faz a fiscalização corretamente, passando por responsabilidade da prefeitura que, há 15 anos, prometeu a construção da Cidade do Samba 2 e ainda não entregou esse projeto", destacou.


"A prefeitura, por exemplo, atrasa a entrega da subvenção. Quando o dinheiro chega tarde, o que fica curto é o tempo. Então, as escolas têm que trabalhar noite e dia para poder botar o Carnaval na avenida", contou.


Artur entende que falar sobre as péssimas condições de trabalho é apenas o primeiro passo para que o problema seja resolvido. No entanto, esclarece a solução passa por toda a parte estrutural do Carnaval.


"Mesmo as escolas do Grupo Especial, dentro dos barracões da Cidade do Samba, também têm condições precárias de trabalho. Essa precariedade é uma coisa estrutural da produção da festa. Para a gente poder valorizar efetivamente esses profissionais que a constroem, a gente precisa repensar inteiramente a produção dela. Isso passa por repensar, de fato, toda a cadeia de produção, calendário, espaços, relação com o poder público, formas de financiamento", explicou.


"Além da falta de dinheiro, que faz com que a remuneração desses trabalhadores seja efetivamente muito baixa, eu acho que o que torna precário é o tempo. Essas escolas acabam produzindo Carnaval em muito pouco tempo. Dependendo da escola, do grupo, estamos falando de um mês para produzir todas as fantasias, para produzir as alegorias. Isso gera as pessoas dormindo dentro dos barracões, e aí elas não têm necessariamente acesso a condições de higiene, de descanso ideais… Isso gera você trabalhar horas e horas seguidas com produtos que são tóxicos, como, por exemplo, colas que a gente utiliza. As máquinas ficam ligadas o tempo todo, o que aumenta risco de incêndio, sobreaquecimento, choque", concluiu.


Na quarta-feira, durante entrevista em frente à fábrica, o prefeito Eduardo Paes abordou a possibilidade de acelerar a construção da Cidade do Samba 2. Os especialistas afirmaram que a medida é importante, mas não suficiente. Além disso, pontuaram que o projeto é antigo.


Para Mauro, a inauguração do espaço não resolve os problemas relacionados à fragilidade das relações de trabalho, e com isso, os profissionais seguirão vulneráveis.


"A Cidade do Samba é de 2006, ainda é muito recente, e o Grupo Especial é uma fração muito pequena do que é a realidade do Carnaval carioca. A Cidade do Samba 2 é uma necessidade, mas só vai atender as escolas da Série Ouro. Vamos continuar com grupos que não vão ter os seus barracões para a produção. Para as escolas da Série Ouro, a Cidade do Samba 2 é um equipamento que vai ser absolutamente importante, sobretudo produzindo uma condição de infraestrutura melhor em relação aos seus barracões de hoje. Mas não resolve, por exemplo, o problema da precariedade na dimensão das relações trabalhistas", opinou.

"Ela melhorou as relações das condições de trabalho em termos de infraestrutura física, mas em relação às questões trabalhistas, aos direitos dos trabalhadores, eles foram absolutamente mantidos", concluiu. 


Já Artur pontuou que, até mesmo na Cidade do Samba 1, muitos estão inseridos em péssimos contextos. "Tem uma estrutura significativa e muito mais dinheiro do que as escolas dos grupos inferiores, mas a gente vê condições de trabalho bastante precárias. Nós já tivemos casos lá, como em 2011, que houve um incêndio que pegou quatro barracões. Agora, a gente precisa frisar também que a Cidade do Samba 2 estava sendo discutida já no segundo mandato do prefeito Eduardo Paes, há muitos anos atrás. É uma medida que vem, mas vem com grande atraso e depois de muita cobrança por parte das escolas para que ela saísse do papel", contou.


O caso citado pelos especialistas foi incêndio que atingiu os barracões da Portela, União da Ilha e Grande Rio. Na ocasião, as escolas perderam quase todo o material para o desfile, realizado mesmo sem o julgamento dos avaliadores a respeito das agremiações afetadas. Mauro também lembrou a morte do escultor Igor Sérgio da Silva Faria, de 21 anos, que foi eletrocutado no barracão da São Clemente, na Cidade do Samba, em 2017. 


"É sempre bom marcar nossa solidariedade, a torcida pela pronta recuperação de todas as pessoas que foram feridas, vitimadas. É importante registrar que, infelizmente, essa tragédia não é algo novo. Se insere numa longa história que expõe para todo mundo a precariedade da estrutura que tem produzido o maior espetáculo da Terra", finalizou Mauro.


A auditora-fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ana Luiza Horcades, esteve na fábrica de tecidos e fantasias de carnaval que pegou fogo na Zona Norte do Rio, na quarta-feira, e afirmou haver fortes indícios de que os funcionários não possuíam vínculo empregatício.


"Fiz uma visita preliminar para avaliar a gravidade da situação. Há fortes indícios de que essas pessoas estavam em situação irregular e sequer tinham carteira assinada. No entanto, tudo será analisado, e também ouviremos os responsáveis pela fábrica, pois é possível que esses trabalhadores tenham sido contratados por outro CNPJ", disse Ana Luiza em entrevista ao DIA.

Chefe da Seção de Segurança e Saúde no Trabalho do Rio de Janeiro, a auditora afirmou que o incêndio é classificado como um acidente de trabalho gravíssimo, uma vez que as condições de segurança foram completamente negligenciadas pelo empregador. "É evidente que estávamos diante de uma situação crítica. Poderíamos ter 40 ou 50 mortos agora. O que acontecia lá dentro pode ser ainda pior do que imaginamos", alertou.


Incêndio em Ramos

As chamas atingiram, na manhã de quarta-feira (12), uma fábrica de tecidos que produzia fantasias para escolas da Série Ouro. Bombeiros resgataram 21 vítimas e as encaminharam a unidades municipais, ao Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, onde ainda há oito internados em estado grave, e ao Hospital Federal Bonsucesso, que atende um paciente também em estado grave.

Nesta quinta-feira, a Polícia Civil realizou uma perícia e encontrou 'gato' de luz na fábrica. Todas as máquinas de sublimação, corte e costura operavam 24 horas por dia devido à proximidade dos desfiles de carnaval e estavam conectadas irregularmente à rede. Segundo a 21ª DP (Bonsucesso), a diligência contou com o apoio de representantes da Light para saber se tinha ligação clandestina de energia no edifício.



O Ministério Público do Trabalho (MPT) também instaurou um inquérito para investigar as condições de trabalho dos funcionários. Testemunhas disseram que trabalhadores dormiam no local, inclusive adolescentes. A fábrica tinha alvará da Prefeitura do Rio para as confecções, mas não possuía autorização do Corpo de Bombeiros e consta como inapta junto à Receita Federal por omissões de declarações.